quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

São francisco Xavier 03/12/2014


   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Francisco Xavier nunca pisou no Brasil. Como explicar, então, sua imagem na Catedral
Basílica de Salvador, carregando uma criança negra, e vestido com motivos orientais?
Por volta de 1745, foram erigidas duas capelas laterais na então chamada Igreja dos Jesuítas. As duas ocupavam a nave, uma em frente à outra, e o arco era decorado com pinturas. De autoria provável de Francisco Coelho, irmão do colégio jesuítico baiano, elas homenageavam a vida de dois santos: à direita do altar central, Santo Inácio de Loyola, à esquerda, São Francisco Xavier. Santos máximos da Companhia, os dois jesuítas tinham sido canonizados no mesmo ano, 1622. Enquanto Loyola era o fundador da ordem, Xavier era o modelo máximo do missionário, traduzindo na sua figura os ideais da missão que marcavam a Sociedade de Jesus: abnegação, trabalho, conversão, milagres, martírio.
Um dos modos mais eficazes de propagar essas ideias era por meio das imagens. Os episódios da biografia de São Francisco Xavier eram traduzidos em óleos, afrescos, gravuras e desenhos. Circulavam em livros, panfletos e folhetos. Ornavam as igrejas dos jesuítas em Roma, Goa, México, Luanda, Lisboa. Em Salvador, ganharam destaque porque, além de exemplo de missionário jesuíta, o santo era desde 1686 o padroeiro da então capital do Estado do Brasil. Suas imagens, em um altar monumental como esse, integravam os esforços para disseminar a devoção ao santo. Simbolizavam a união entre a Companhia e o Reino, entre a Igreja e a Monarquia.
A vida de São Francisco Xavier (1506-1552) transcorreu entre a Europa e o Oriente. Missionário na Índia, em Malaca (Malásia), nas Molucas (Indonésia), na China e no Japão, sua biografia traduziu-se na possibilidade da conversão dos gentios. Os episódios emblemáticos de sua vida, escolhidos a dedo pelos biógrafos e narrados em tinta e buril pelos pintores e gravadores, deviam servir para inspirar e educar qualquer fiel ou converter qualquer gentio no Império português. As cenas selecionadas, em geral, narram sua preparação para a ordenação, a viagem ao Oriente – repleta de visões e sonhos proféticos – os tormentos sofridos e superados com a ajuda de milagres, o trabalho missionário e o combate ao gentilismo na Ásia – confirmando as profecias e corroborando os milagres. A consagração da sua vida de sofrimento e dedicação culmina na morte, quase um martírio, na costa chinesa, e prossegue com a devoção e as maravilhas feitas pelo depois santo. Esse percurso, condensado em algumas dezenas de cenas, sintetizava não só a vida de Xavier, mas os princípios do que deveria ser uma vida cristã segundo os jesuítas.
A pintura do painel da Igreja Jesuíta em Salvador inspirou-se em um sonho recorrente de São Francisco Xavier: ele se via carregando um gigantesco “índio negro como os da Etiópia” e, ao acordar, estava com o corpo dolorido e cansado, como se tivesse mesmo suportado o peso. Aquela imagem seria a revelação de sua luta pela conversão dos gentios. A figura do índio representa as Índias, como se chamavam as possessões asiáticas dos portugueses. Difundido por diversos biógrafos, a partir do relato do padre Diego Lainez, o sonho ganhou melhor forma escrita pelo jesuíta português João de Lucena, na primeira grande hagiografia (biografia de santo) de Xavier, impressa em 1600, antes mesmo de sua canonização. Foi a partir dela que o sonho foi vertido da letra para as tintas.
A primeira pintura conhecida do sonho foi realizada por Anthony Van Dyck em 1622, em ocasião das festas de canonização, e disposta na Igreja dos Jesuítas em Roma, Il Gesù, templo central da Ordem. Nesse óleo, o “índio negro, etíope” tinha características de uma figura indiana, semelhante a um brâmane. Era sustentada por Xavier num detalhe na esquerda inferior do quadro, cujo centro era a figura do santo sendo coroado com uma grinalda de flores trazida por querubins. Na segunda metade do século XVII, esse “índio” asiático transformou-se numa figura ameríndia, de pele avermelhada, portando cocar, vestindo saiote de plumas. Assim foi retratado, em 1694, pelo pintor polonês Jakob Potcka no afresco da Igreja de Mindelheim, na Bavária, região de forte devoção ao santo jesuíta. Nele, aparecia também representado como um africano, mas trajado com plumas, cocares, tal qual se retratavam os índios americanos. Esse “índio etíope” figurava em gravuras de meados séc. XVII até o final do séc. XVIII, retomadas num sonho de Xavier pintado em 1720 por Antonio de Torres, na Casa Professa da Cidade do México.
Mas a representação que está na atual Catedral Basílica de Salvador, produzida no século XVIII, ganhou outros contornos. No lugar do gigantesco índio, ou de um homem em vestes brâmanes, Xavier carrega uma figura quase púbere, negra, de cabelo crespo e vestido com um traje listrado. Se antes foi “índio etíope”, indiano e ainda ameríndio, o que aparece no painel de Salvador é um garoto negro. Remissão ao “negro como etíope”, da versão do português João Lucena? Pode ser, pois os africanos escravizados no Brasil eram chamados de etíopes. Mas não parecia um índio negro (como em gravuras e pinturas dos séculos XVII e XVIII), pois estava vestido de modo similar às representações dos escravos que circulavam à época.
Xavier também é retratado de maneira diferente da usual: a barba permanece, mas a tonsura (corte tradicional das ordens religiosas), se existe, está escondida sob um chapéu volumoso, não muito comum (embora não inédito) na iconografia do personagem. A imagem remete a outro jesuíta que esteve na China, Matteo Ricci (1552-1610), que conhecia a língua chinesa, ao contrário de Xavier, que nunca aprendeu nenhuma língua asiática. Pelo seu conhecimento e pelo esforço de traduzir o cristianismo para o chinês, Ricci era representado em vestes orientais, que de fato adotara para ser aceito e converter a China de dentro. Nas gravuras que o retratam, os trajes à maneira asiática são completados por um chapéu, muito similar ao usado pelo Xavier da igreja de Salvador.
O menino negro tem relação com o relato de Lainez (narrado por Lucena), mas sua roupa lembra a dos escravos “etíopes”, cujo trabalho ajudava a sustentar o Brasil. As vestes negras e a barba de Xavier são similares ao hábito da Ordem, fazendo com que qualquer jesuíta que se vestisse assim pudesse se identificar (e ser identificado). O chapéu oriental, por sua vez, pode indicar um lugar específico do seu trabalho missionário. Ao misturar esses elementos, o autor da imagem talvez buscasse traduzir um esforço dos jesuítas em transformar São Francisco Xavier em exemplo missionário também para as Índias Ocidentais. Afinal, seus milagres faziam dele o “peregrino com as mesmas maravilhas na América” que havia sido na Ásia, nas palavras do padre Antônio Vieira (1608-1697). Afirmou isto no oitavo sermão de um volume com 15 prédicas dedicadas exclusivamente ao santo. Ao longo dos sermões, Vieira buscou frisar que, embora tivesse nascido no reino de Navarra (região entre Espanha e França), Xavier era português de espírito (e de devoção). Esses sermões, mesmo nunca pregados, foram impressos em 1694 para responder a uma encomenda da rainha portuguesa, Maria Sofia de Neuburgo, devota de Xavier, como aliás toda a casa dos Bragança.
Desde o século XVI era estreita a ligação entre a figura de Xavier e a coroa portuguesa, fortalecida no século seguinte. Tanto a trajetória do jesuíta – que partira de Portugal para o Oriente com a bênção de João III – quanto sua devoção – vinculada a eventos importantes do reino, como a Restauração de 1640 – eram associadas à expansão dos domínios portugueses e à conquista do Oriente. Por meio da conversão dos gentios, os jesuítas serviam ao Império Português, o que ajuda a compreender a utilização dos dois signos não usuais (o garoto negro e o chapéu oriental) na mesma imagem.
Alçado a padroeiro da cidade de Salvador, São Francisco Xavier era ao mesmo tempo santo de Portugal e de seus domínios, e exemplo da ação jesuíta nos espaços ultramarinos lusitanos. Sua imagem na Igreja dos Jesuítas foi um transplante do apóstolo do Oriente para o Ocidente americano, sem perder de vista a unidade da missão e do Império: em trajes asiáticos, sustentando um africano, numa igreja americana, na capital do Brasil

 
Texto - Internet
 

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